23/11/2017

PRÓXIMOS, PÓS E PARALELOS


Já à venda.

Saiu esta semana o Perdidas - Histórias para Crianças que Não Têm Vez - uma antologia de contos e poemas de grandes autores, sobre crianças vítimas da violência no Rio de Janeiro, com os direitos autorais revertidos em ações beneficentes na cidade.

Aceitei participar não só pela boa ação - porque boas ações raramente geram boa literatura - mas pelo que o tema me instigava. Gostei bem do resultado. Meu conto "Domingo Maior" é praticamente uma história de fantasma, um conto de pós-terror, como uma prova de que esse novo subgênero está aí de fato para tratar de questões mais densas.

A mãe tirou o prato do forno, levou até ele. “Cuidado que está quente”, mas não estava muito. O dia havia acabado, já estava escuro, mas ela não se preocupou mais em acender a luz; sentou-se ao lado dele e ficou observando o filho comer com apetite. Lembrava um pouco o marido, lembrava um pouco ela mesma, era um menino que ela havia amado por toda a vida, que quase lamentava amar para sempre, porque para sempre ela iria sofrer...

Escrever contos sempre é um bom exercício, uma maneira de testar novos formatos, temas, tratar de questões mais imediatas (como essa), e fico feliz que este ano tenham me encomendado um punhado deles.

Ilustração de Marcos Garuti para meu conto na revista do Sesc.

A morte de João Gilberto Noll, por exemplo, também me inspirou um pós-terror: "A Coelha Vampira", que publiquei na revista do Sesc (e depois em versão estendida aqui no blog).

Um bicho de estimação é um exercício de síndrome de Estocolmo. Ela não precisava de mim, eu não gerava empatia, e sentia que fracassava miseravelmente como sequestrador. Perguntava-me se para a síndrome se estabelecer era preciso um mínimo de charme por parte do perpetrador, um mínimo de ameaça, transgressão, juventude, coisas que eu não tinha, e a coelha sentia. A coelha sentia falta.


Mês passado também publiquei um conto no jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, uma resposta aos neo-consevadores que querem limitar os temas da arte e da literatura, uma visão de violência pelos olhos do agressor: "Maldita Primavera", aqui.

Marcelo levanta-se e olha para baixo. Fecha o zíper. A menina como um personagem de desenho animado, esmagado por um rolo compressor. Não, seu pulmão ainda infla. Palpita. Marcelo pega o tijolo ao lado e é um golpe rápido na lateral esquerda da cabeça. Pronto, nada mais a palpitar. Geleia orgânica. Ele sente o ombro. Um gosto azedo na boca. O cheiro pungente de seus próprios líquidos e os mosquitos o devorando vivo.
Pré-Trevoso ilustrado por Wagner William.
E no começo do ano publiquei na Superinteressante uma "prequel" do meu Trevoso - "Galhos Frescos"- também com uma cutucada nos evangélicos:

Então o velho o viu, com pés leves, pernas longas, passos largos, como Jesus caminhando como um lagarto sobre as águas. O menino. Ocre como a lama. Vasta cabeleira desgrenhada. Com um balde em mãos. Saltava catando os caranguejos.

O texto integral só saiu na revista impressa. Quero reunir esses e outros para um novo volume de contos, contos de "pós-terror" ou apenas um pós-Pornofantasma. Sei que livro de contos é visto como algo menor no mercado, então estou me concentrando em publicar antes um novo romance (que ainda levará um bom tempo para eu terminar - vai numa direção totalmente diferente dos meus romances mais recentes), mas ano que vem devo experimentar uma pequena publicação para outro público... E antes disso tenho de fazer o conto para a antologia de terror com os novos autores que encontramos no fim de semana. Felizmente, a criatividade continua pululando por aqui.


20/11/2017

FIM DE SEMANA DO TERROR

A turma. 

Passei os últimos dias trancado com uma dúzia de malucos, num sítio afastado, sem sinal de celular e internet.

O “Fim de Semana do Terror” foi organizado pela Cássia Carrenho (ex-Carlos Carrenho) para reunir novos autores de terror, thriller e policial, com grandes nomes do gênero como a Ilana Casoy (o maior nome da literatura criminal no Brasil), Mariana Rolier (editora da Harper Collins, com passagens pela Rocco, Leya e Ediouro), Raphael Montes (garoto prodígio da literatura policial) e eu. Os inscritos traziam ideias sobre o que estavam escrevendo para debatermos todos, e nós dávamos direcionamentos possíveis e workshops sobre a escrita.


A sala onde os inscritos apresentavam suas ideias. 

Nunca me considero apto a ensinar ninguém a escrever. Não dou oficinas, não tenho fórmulas, não tenho metodologia e cada livro meu é conduzido de uma forma, de maneiras muito instintivas. Então dividi com eles minha experiência no mercado, apontei caminhos da escrita de horror (e pós-terror) e passei depoimentos de outros conhecedores do gênero por aqui (Antônio Xerxenesky, Carlos Primati, Hugo Guimarães e Fernando de Abreu Barreto).  Já Raphael apresentou estruturas do romance policial, com bastante embasamento, Ilana dividiu algumas de suas histórias e entrevistas em vídeo com “assassinos célebres” e Mariana deu o “outro lado”, das editoras.

Eu nunca tive crise criativa, nunca fiquei travado para escrever e, bem ou mal, sempre consegui viabilizar meus projetos literários em nove livros publicados por grandes editoras. Então foi nas conversas individuais que tivemos no domingo que me senti mais no meu território. Os novos autores sentavam-se comigo e traziam o que estavam trabalhando e eu conseguia ver claramente caminhos possíveis, desenvolvimentos para a história, tinha de me conter para não dar a eles uma trama completa.

Os meninos (que iam de 21 até 71 anos) tinham ótimas ideias. Mas achei curioso como todas as propostas eram baseadas em enredo, e enredos bastantes complexos, fossem no romance ou no conto. Talvez pela maioria ser fã do Raphael e da Ilana, traziam macro-histórias de investigação policial, que remetiam a traumas da infância e se desdobravam em épicos. Eu, como grande partidário do minimalismo, tentava conduzi-los ao simples, à essência. Ontem, conversando no café da manhã, em cinco minutos eu e Ilana desenvolvemos uma ideia de conto para exemplificar a eles:

“Imagine eu e Ilana tomando café aqui na varanda, vendo os esquilos passarem, conversando sobre as manchetes criminais do momento. Esperamos pela Mariana, que demora a acordar. Ilana conta sobre um serial killler que age pela região, matando mulheres. Raphael chega e perguntamos se ele viu a Mariana, que costuma acordar cedo. Ninguém sabe dela. Então vemos um esquilo carregando um dedo de mulher na boca...”

Temos aí um conto completo, uma única cena (que obviamente precisa ser desenvolvida em clima e diálogos). Era a uma simplicidade assim que eu tentava direcioná-los.

Também repeti incansavelmente a pergunta básica que faço a todos novos autores: “mas o que você quer dizer?” Acho curioso que os aspirantes a autor de gênero sejam tão conduzidos por histórias, mas menos por conceitos e pulsões internas, que é o que garante a densidade do texto. Uma coisa é a história que você criou, outra coisa é uma verdade que você precisa comunicar. 

Um romance como “Neve Negra” nasce da minha necessidade de tratar das questões da paternidade. O que eu quero dizer é isso, como a paternidade pode ser uma utopia cruel. Com esse tema martelando na minha mente, vou atrás de um personagem que possa personificá-lo – poderia ser um novo pai adolescente, um pai solteiro, um pai adotivo; escolhi um pai tardio, meio ausente. Com o conceito e o personagem, a história vai se desenvolvendo meio que naturalmente para mim.

Ilana debatendo na varanda. 

O fim de semana também teve churrasco, não faltaram bebidas, e jogamos uma partida de “Perfil” temático de terror, onde criei fichas sobre filmes, livros, crimes reais e métodos de assassinato. O pessoal todo foi muito querido e, apesar de backgrounds tão diferentes, tudo fluiu muito suave, com a paixão de todos pelo gênero. Valeu bem.

O encontro também gerará uma antologia, com contos de todos nós, a ser lançada por plataformas digitais e, quem sabe, em formato físico.

Não sei quando acontecerá outro encontro desses, com outra turma. Mas a Cássia já está organizando outras viagens de imersão, com outros gêneros e outros autores. Fique ligado no site dela:


Para coroar o fim de semana, Raphael se redimiu de sua distância e hoje escreveu na sua coluna no Globo não só sobre nossa experiência, como sobre meu livro: 

“Neve negra” é uma grande história de terror psicológico que faltava na literatura brasileira, com tensão discreta e permanente."

Para ler inteiro, aqui: 

10/11/2017

O MACACO E A CAFEÍNA

Na Biblioteca Parque Villa-Lobos
Sábado agora tenho a última mesa do ano, um debate com Manuel da Costa Pinto no Parque Villa-Lobos, com entrada gratuita. Já fiz um debate desses com ele, recentemente gravei entrevista para o programa dele no Arte 1, em 2014 gravamos o Metrópolis com BIOFOBIA, é sempre ótimo. Manuel é um cara que entende profundamente de literatura e trata minha obra com respeito e consistência. Acho que poderemos aprofundar questões de Neve Negra que ficaram em segundo plano...

O livro está indo bem. Consegui muita mídia regional pelo país, devido às minhas viagens e aos leitores fiéis que vão ganhando poder. Tive página inteira no Paraná, Pernambuco, Bahia, Ceará, Minas, Santa Catarina (nada no RJ). Na grande maioria das vezes sou eu mesmo falando do livro, em entrevistas, o que é um pouco frustrante. Toda divulgação é preciosa, mas a falta de opinião, das resenhas, deixa a gente sem termômetro. Pelo menos não surgiu nenhuma crítica negativa - bem, talvez hoje em dia isso seja substituído pelo silêncio...

Muitos colegas escritores têm postado sobre o livro, redescobrindo minha obra - acho que é algo do tipo: "Hum, ele foi para a Companhia, de repente o livro presta..." Alguns apontaram como uma boa volta ao que eu fazia no começo de carreira (com Feriado de Mim Mesmo), sendo que BIOFOBIA é um livro irmão. Dos colegas-amigos mais próximos, silêncio total. De repente acham que não preciso mais da força, de repente é uma questão de competição, ou descaso, de repente tudo junto... Só sei que para mim seria impensável não divulgar o lançamento de um amigo. Sei bem a batalha que é, na editora que for.

Agora é deixar o livro caminhar com as próprias pernas, se arrastar com as próprias patas, e focar no próximo, que estou rascunhando há um tempo, ainda não encontrei a estrutura ideal, e está exigindo muita pesquisa, leitura. Não ajuda a fila interminável dos contemporâneos, dos colegas, que não posso deixar de ler...

Passei as últimas semanas literalmente trancado neste apartamento, terminando uma tradução, trabalhando num pequeno projeto para o ano que vem, deixando minha barba crescer, meu cabelo crescer emaranhado, sem precisar de xampu e desodorante, sendo visitado ocasionalmente por pedreiros que estão quebrando o prédio a procura de vazamentos, que estão deixando meu banheiro pior do que o impossível... De tempos em tempos, a geladeira vazia ("só a luz, e o ar...") me obriga a ir ao mercado em frente; só então me olho no espelho do elevador, confirmo que envelheci 40 anos, e penso se não deveria ao menos ter passado uma escovinha na minha camiseta cheia de pelos de coelho. Dia desses serei barrado no mercado como mendigo (marcado no bairro como banido).

Gaia sempre comigo. 

A coelha é minha grande companheira, sempre. É um objeto inanimado, claro, fruto da minha imaginação - animal de estimação só faz sentido para quem tem. Mas responde ao que falo, me obriga a verbalizar, é a única que esquenta minhas cordas vocais. Trancados os dois aqui, ela se torna extremamente carente, quer carinho o tempo todo, é o que me obriga a levantar todas as manhãs para dar comida, está sempre desperta-saltitante nos filmes de insônia da madrugada.

A insônia é fruto dessa absoluta falta de horário, efeito da cafeína que me deixa mais acordado do que produtivo. Será que não posso mais nem isso? Não sei se é sintoma residual dos excessos da juventude, de uma genética fodida; há anos que não uso nenhuma droga ilícita, nunca tomei psicoativos, o álcool sempre acalma, mas estou dando um tempo; agora é a cafeína que me ferra. Li esses dias de um macaco que sofreu overdose de cafeína na índia. Não é preciso ir tão longe, sinto o macaco dentro de mim. Nessa vida-água-parada-aquário-sem-bolhas o café tem efeito absurdo. Começo a tretar nas redes sociais, escrevo emails destruidores ao meu pai-fascista, volto a postar neste blog... Como o bêbado arrependido do que disse, ou Mr. Hyde dos baristas, não me reconheço sob efeito de cafeína; sem café sou mais silencioso, consciente e depressivo.

Mas sou feliz porque ainda tenho marido... acho; acho que ele está na cozinha. Temos nos visto pouco, última vez há quinze dias, falado pouco. Exilado em Maresias, vive para o restaurante, mesmo quando estou lá ele não está comigo. Devo voltar para lá no final do mês e passar o verão - a casa é grande e será bem vinda a companhia de amigos.



Antes disso, tenho a viagem de "imersão" na literatura de horror, organizada pela Cássia Carrenho. Parece que restam ainda 2 das 15 vagas, porque teve gente que desistiu. Tenho lido o formulário de inscrição dos participantes e tem muita gente interessante, de diferentes backgrounds. Acho que serão dias de conversas muito enriquecedoras. Sou fã da Ilana Casoy e vai ser lindo ver tudo o que ela tem a dizer; a Mariana Rolier é grande editora e vou aprender muito com o "outro lado" trazido por ela; Raphael é eficientíssimo e traz conquistas impressionantes na literatura comercial. Eu nunca me considero um modelo nem tenho fórmulas para ensinar ninguém a escrever, não dou oficinas. Mas acho que tenho alguma experiência para dividir - bem ou mal, são quinze anos de carreira, nove livros publicados pelas maiores editoras do país e... SESSENTA livros traduzidos.

(Prometo lavar os cabelos, passar desodorante e maneirar na cafeína para o encontro).

Informações aqui:

https://www.cassiacarrenho.com/fim-de-semana-do-terror




TIREM AS CRIANÇAS DA SALA

(Publicado na Ilustríssima da Folha deste domingo) Do que devemos proteger nossas crianças? Como não ofender quem acredita no pecado? Que ga...