14/10/2017

DIA DA CRIANÇA



Feriado de Dia das Crianças - embora alguns insistam que é dia da Nossa Senhora Aparecida, como se o Brasil não fosse um país laico... Vim no começo da semana para Maresias com irmã, cunhado, coelha, sobrinha. Bom que o trabalho do Murilo possa proporcionar isso. Bom que minha sobrinha possa aproveitar. Sorte dela ter um tio que vive em pecado, num relacionamento homossexual. Se eu fosse hétero, casado com uma mulher, minha mulher receberia ainda menos do que eu, pois as mulheres recebem menos do que os homens, e teríamos de usar o dinheiro para constituir família, não daria para manter duas casas, na praia e em São Paulo, não teria quarto extra para receber visitas, não daria para comprar filé para minha sobrinha...

"Você é o tio provedor com casa na praia", já me disse uma vez minha irmã. Questionei também o quanto eu seria "o tio gay", mas isso ainda não parece fazer sentido. Filha de pais artistas, estudando num colégio (particular) com enfoque alternativo, Valentina já nasceu acostumada que existem casais de meninos, de meninas, de homem com mulher, para ela ainda não é estranho. Os relacionamentos simplesmente são assim.


Valentina na praia. 
É curioso ver minha sobrinha, as novas configurações da minha família, o quanto se repete, o quanto tentamos reproduzir aquele modelo de infância.

Também tive tios provedores (no caso, tios mais "ricos" do que gays) e me lembro de tantas férias, feriados, que viajávamos para a praia. Eu odiava. Odiava tanto a ponto de lembrar como negativo, embora a visão que tenha me ficado hoje seja positiva: uma casa em Ilhabela com uma praia particular em que conseguíamos pegar lagostas, passeios de barco, uma piscina com borda infinita...

Quando a mãe tinha mais ou menos a idade dele atual, já separada do marido, cercada de amigos boêmios e namorados de ocasião, levando os filhos a tiracolo para viagens nos feriados, no Réveillon. Os adultos ficavam a beber, a fumar e a rir numa mesa pós-jantar, parecendo sempre ter tanto a conversar, em conversas que pareciam tão desinteressantes. As crianças todas eram deixadas umas às outras, com a expectativa de que espelhassem a amizade dos adultos, sem aditivo algum para ajudar. Ele aos sete, tendo de se tornar amigo instantâneo de um menino de treze, de uma menina de oito, se aproximava mais de um de seis...

É essa lembrança que tenho principalmente da infância: minha incapacidade de ser feliz. Meu medo de tudo, minha inadequação, minha impossibilidade de ser quem eu era porque tinha de cumprir algum papel que esperavam de mim, como menino: jogar bola, transgredir, ficar amigo de desconhecidos. Viagens nas férias e feriados eram sentidas por mim como um grande desperdício de momentos preciosos em que eu poderia ficar sozinho - porque mais do que tudo eu odiava a escola. Tudo o que eu mais queria era ficar no meu quarto jogando videogame ou brincando com meus bonecos. Mas os adultos insistiam que eu deveria ser feliz!


Mini-me. 

A insistência deve ter servido para algo. Se hoje lembro da infância como uma época bem sofrida, estou longe de ser o menino assustado que fui. E não há melhor definição de felicidade para mim do que viagens, praias, lagostas, piscinas com borda infinita... 

Felizmente Valentina já parece ter nascido com mais vocação para ser feliz. Deve ter puxado minha irmã, que, ao contrário de mim, sempre foi a integrada e popular, onde quer que estivesse. Ela adora viajar para praia - mas também não tem de passar por esse confronto de dividir; é fruto de uma geração que tem poucos filhos, poucos primos, uma atenção integral dos adultos. 

Eu mesmo tenho cada vez menos vontade de ter filhos. Já me satisfaço com literatura, coelha, sobrinha. Inclusive estou longe de ser o melhor tio, não tenho muita paciência, empatia e didática. Tento manter uma relação de igual para igual, mas o que seria isso entre uma menina de cinco anos e eu? Esses dias ela escondeu o diário dela e me desafiou a encontrar. Encontrei o diário dentro da casa, quando ela estava do lado de fora. Tranquei a porta e fiquei mostrando pra ela através do vidro. Nunca ela chorou tanto. Eu só estava brincando. Será que seria mais fácil com um menino? Não aprendi ainda essas regras de ser adulto. 

Mas esse feriado não foi só sofrimento, não foi só choro. É bom ter a companhia de minha irmã Rhena - tenho quatro irmãos, mas ela foi a única que foi criada comigo e tem um histórico em comum. Tivemos passeios, praia, churrasco e estrogonofe... Pensei o quanto estrogonofe era um prato fetiche das crianças dos anos 80, queria saber se funcionaria na minha sobrinha "Geração Dez". Comprei o melhor filé, cogumelos orgânicos, molhos flambados para fazer um estrogonofe autêntico... E ela gostou. Mas acho que não causou grande sensação. 

Presente de Dia das Crianças mesmo eu não comprei... Meio que esqueci, meio que achei que minha irmã iria considerar a data capitalística demais... Mas vi que a Valentina apareceu com um novo bichinho de pelúcia dado por minha mãe. 

Eu: Olha o [bichinho do] Treta News!
Ela: Não é o Tetonildo, é um guaxinim.
Eu [que sempre fui geek de zoologia]: Isso aí não é um guaxinim....
Ela: É sim, a moça da Ri Happy disse...
Eu [dando um google]: Isso é um panda vermelho.
Ela: Não, a moça da Ri Happy disse...
Eu: Você confia no seu tio ou na moça da Ri Happy? Se ela entendesse de bicho estaria trabalhando num zoológico.
Ela: Mas... mas...
Eu: E vou chamar de Tetonildo.
A menina começou o dia das crianças chorando.
A pelúcia, o "Tetonildo" do Treta News, o panda vermelho real. Tudo panda vermelho. 

Por sinal, minha irmã dirige esse belo espetáculo de improviso com DOZE mulheres empoderadas no palco, até o final do mês, no Sérgio Cardoso.)


TIREM AS CRIANÇAS DA SALA

(Publicado na Ilustríssima da Folha deste domingo) Do que devemos proteger nossas crianças? Como não ofender quem acredita no pecado? Que ga...