03/04/2006

HUMANOS SÃO NOSSOS AMIGOS, HUMANOS NÃO SÃO PERIGOSOS...

Na madrugada de sexta para sábado eu até dormi num horário decente. Mas lá pelas tantas acordei com uns barulhos meio esquisitos, sirenes, gritarias, almas torturadas pelas labaredas de um incêndio!

Não é que eu more num bairro, assim, "peligroso", é que as fronteiras entre as classes se estreitam cada vez mais e blablablá, blablablá... Então aqui na frente tinha um cortiço invadido por sem-tetos. E depois de muito barraco com a polícia, parece que eles resolveram incendiar o local. Tipo, "se a gente não pode morar aqui, ninguém pode". (Ai, ai, que meda!)

Eu tentei continuar dormindo, mas meu sonho foi invadido pelas sirenes de uma forma estranha...

Sonhei que a polícia estava me perseguindo [a mudança na cor da fonte é para dar o tom onírico]. E eu, para me esconder dos gambé, mergulhei no fundo de um lago cheio de jacarés. Eles não me faziam mal.

O que isso quer dizer, Sra Del Fuego? (fuego, répteis, veja só, tudo se encaixa). Para mim, a lição foi "NÃO COMA SEUS AMIGOS", uma coisa meio PETA, né? Não? "Humanos são nossos amigos, não coma humanos. Nem tente digerir seus sonhos...". Haha.

Mais bonitinho foi um vizinho/leitor, que viu a fumaça de madrugada e achou que era no meu apartamento. Ele tinha lido aqui no blog sobre as velas, L'autreamont, etc, daí fez as ligações erradas...

Voltarei no seu churrasco!

Aproveitando a deixa, coloco um conto inédito e antigo. Acho que é o momento propício. Pra quem gosta de reality show: tchau!


Minha Casa Pegou Fogo

Esperávamos no meio da estrada por um ônibus. O sol forte, o céu azul e a ausência de prédios me dava a impressão de que o horizonte era quase infinito e que eu poderia seguir qualquer caminho que quisesse. Que o mundo estava aberto, sem pedágios, e eu teria de manter um percurso muito definido em mente se não quisesse me perder. Na vida.

Minha mãe tinha quase metade da minha altura, mas ainda assim me pegava pela mão e fazia sinal para o ônibus parar. Eu era o filho que ela colocava no mundo, dizia para eu não ter medo e voltava para sua casa. Voltava para a casa que foi sempre sua. Voltava para o lugar de onde sempre veio. De onde veio? Eu mal sabia para onde eu ia, perdido naquela estrada, com tantos céus azuis, sóis, horizontes e calor me derretendo a masculinidade. Agradeci ao motorista, paguei com meu próprio dinheiro e me sentei ao fundo.

Lá dentro, continuava fazendo muito calor. O céu continuava imenso pela janela e permanecia em mim a crença de que eu poderia ir para qualquer lugar. Não porque eu fosse tão livre na vida. Não porque eu quisesse tudo conquistar. Mas porque, saindo da casa da minha mãe, não haveria lugar algum em que eu me sentisse realmente à vontade. Não haveria lugar algum que eu chamaria de lar.

A casa da minha mãe era nova. Eu nunca havia morado lá. Foi uma casa construída para quem não tem filhos, mas recebe visitas. Eu podia entrar em todos os quartos. Eu podia comer os chocolates. Podia deitar na varanda e os cachorros viriam fazer festa em mim. Os cachorros me reconheceriam como filho. A comida era feita para mim. E embora não houvesse cicatrizes minhas no quintal, onde mais eu poderia chamar de lar?

De noite, acendêramos a lareira. Foi necessário um grande esforço por parte da minha mãe. Gravetos, jornais, lenha e velas, até o fogo pegar. Ela é que conseguiu fazer assim. Ela conseguiu incendiar dentro da sala, sem o fogo se alastrar. Estava frio o suficiente para nos sentirmos aquecidos. Frio o suficiente para fazer calor.

E naquele ônibus, perdido na estrada, eu quase não sentia o sol entrar. Depois de uma hora de viagem foi que percebi o lado esquerdo do rosto arder. Afastei-me da janela e fechei as cortinas. O ônibus entrava na cidade e eu perdia a poesia que me fragilizava e tornava-me incapaz. Desci e peguei um metrô, para o meu apartamento.

Ia chegando lá no final do dia. O suor como resquícios do sol. A barba por fazer como fim de feriado. A mochila em minhas costas que só continha restos, roupas já usadas, nada a começar. Precisava de um banho para endireitar minha coluna. Dormir e acordar em meu próprio colchão. Mas diante do prédio só encontrei uma mancha negra com cheiro de pão queimado. A torrada da minha própria vida.

O prédio havia se incendiado. Ninguém mais gritava ou chorava em desespero. Um porteiro sentava-se na calçada, melancólico, conversando com o vigia. Alguns moradores se lamentavam. Algumas donas-de-casa pareciam conformadas. Já haviam passado pelo estágios em que eu me encontraria: espanto, revolta, resignação. Minha casa pegou fogo.

"Afinal, o que aconteceu?" Ninguém sabia explicar, ninguém queria mais falar nisso. Os vizinhos voltavam para suas casas como se aquele fosse apenas mais um ônibus do qual desceram. Voltavam às casas dos pais, dos irmãos, à família. Deixavam-me ali em frente, olhando para minhas próprias cinzas.

E eu, voltaria à lareira de minha mãe? Aquela, que exigiu tanto trabalho para se acender? Tantos gravetos, jornais, lenha e vela. Como um prédio se acendia assim, em acidente? Gravidez indesejada, rejeitada pelos próprios pais. Resolvi assumir meu filho e dar-lhe de comer.

"Você não pode mais entrar aí. O prédio corre o risco de desabar." Se eu não tivesse seguro, só teria a lamentar. Eu não tinha seguro, mas não lamentava. Não me deixavam nem mesmo revolver os restos, procurar documentos, verificar o que sobrara de uma vida que eu fingira ser minha.

Não poderia voltar atrás. Pegar o ônibus, dizer à minha mãe que eu havia fracassado. Tinha que aceitar meu próprio destino, escrito em carvão. Seguir em frente, novos horizontes. Mesmo que eles fossem obstruídos por prédios queimados e edifícios em construção.

Foi só o sol se esconder que ninguém mais notou. O prédio ficou escuro para que eu pudesse entrar sem problemas, passar pela faixa de segurança, caminhar pelos corredores silenciados. O chão ainda parecia sólido o suficiente. O incêndio tornara o prédio ainda mais acolhedor. Como uma toca de rato, um buraco negro, um cantinho só meu, para eu me esconder. Fui seguindo os degraus, que achava que me levavam, e me deparei com portas que poderiam ter sido minhas.

Era difícil dizer. Difícil dizer até mesmo em que andar eu me encontrava. Como todo o chão, e todo o teto, como todas as paredes estavam pretas, eu não sabia ao certo se subia ou descia, se estava deitado ou de pé. A mesa de minha sala era de plástico, e uma grande massa derretida poderia se passar por ela nessa nova encarnação. Numa explosão, poderia ter se grudado ao teto. Onde eu me encontrava, poderia estar olhando para a televisão, que se grudara ao telefone, que se grudara à geladeira, que se grudara ao teto, numa grande massa derretida.
A divisão dos cômodos ainda existia, mas com os móveis, eletrodomésticos e interruptores incendiados, era difícil até diferenciar o quarto da cozinha, o banheiro da sala, o lado de dentro do lado de fora. Também estava tão escuro e o prédio tão silencioso, que eu me sentia invadindo um sonho de outra pessoa. Logo encontraria um mendigo sonhando comigo. E nesse sonho eu é que não faria sentido.

Tive de seguir então o que o cheiro de queimado me induzia: lareira na sala, torradas na cozinha, aquecedor no banheiro, sexo no quarto. Cada cômodo queimado trazia lembranças olfativas, de quando eu riscara um fósforo, de quando eu fizera amor. A mente se recorda instantaneamente, como num flash, foi assim que a encontrei no quarto, sob o colchão.

"O que você está fazendo aqui?" Ela dormia num quarto queimado. No meu quarto queimado. No meu colchão que restava intacto. Eu invadia seu sonho. E parecia que era eu quem não fazia sentido.

Ela abriu os olhos. Olhou envolta um pouco indecisa. E decidiu levantar-se e olhar para mim. Percebeu que eu estava mesmo ali. Que não era apenas um sonho, com seus olhos inchados. Eu não fazia sentido. O que estava fazendo ali vendo-a dormir?

"O prédio pegou fogo. É perigoso ficar aqui." Eu sei. Ela sabia. Eu sabia também, mas estava lá, invadindo o sono dela. Ela invadia o meu, entre aquelas paredes negras. E entre aquelas paredes negras, parecia que apenas ela fazia sentido.

"O que você está fazendo aqui?" Eu moro aqui, respondi. Ela olhou em volta meio indecisa e decidiu olhar para mim. "Sim, mas o prédio pegou fogo..."

A pergunta era a mesma. Nós dois invadíamos o prédio, tentávamos recuperar uma vida e considerávamo-nos os legítimos moradores de nós mesmos. Só que nós dois invadíamos, nenhum era o morador legítimo. Nenhum poderia ficar lá, era perigoso.

"Eu não tenho para onde ir. Sobrou este colchão", disse ela. Eu me aproximei e sentei no cantinho, não queria manchar minha calça de cinzas. "Esse apartamento é seu?", perguntei eu. Ela deu de ombros, mais consciente de sua incapacidade de determinar. "Não posso nem dizer em que andar estamos. Apenas segui o cheiro de torrada, o cheiro do aquecedor..." Ela seguira. E nos encontrávamos sozinhos no mesmo quarto, no único colchão, que agora era de nós dois.

"O que vamos fazer?", perguntei. Ela deu de ombros e voltou a deitar. Achei que ela queria voltar a dormir, mas antes fez questão de explicar. "Ainda não sei. Se a gente dormir, e descansar, amanhã podemos estar mais otimistas, com mais energia para encontrar uma solução. Ninguém vai vir aqui tão cedo. Podemos dormir até mais tarde, para não sobrar nem um restinho de depressão."

Fazia sentido. Depois fechou os olhos. Não sei se ela esperava que eu fizesse o mesmo. Talvez quisesse apenas me esquecer. Talvez quisesse esquecer todo o resto. Como ela mesmo dissera: acordar sem nem um restinho.
Só sei que quando acordei já era dia. E era cedo. O sol entrava por uma fresta que deveria ter sido uma janela. Podia ter sido uma parede, quem sabe, agora esburacada. Ela abriu os olhos logo, ainda deprimida. "Já é tarde?"
É cedo. E este quarto não se permite escurecer. Nosso plano não deu certo. O tempo que eu dormi, se é que eu dormi, foi como se estivesse apenas pensando. Foi como se estivesse apenas pensando em meus sonhos, no que eu gostaria de sonhar, em não fazer sentido. E essa técnica de divagar só me fez acordar num dia cedo, num prédio queimado, num quarto esburacado.

Antes que pudéssemos decidir qualquer coisa, o quarto desceu um pouco mais, como se fosse um elevador. Sentimos o chão desabando mas não nos preocupamos. A queda foi suave e alterou pouco ao nosso redor. Talvez apenas um pouco mais aconchegante. Talvez apenas um pouco mais enclausurados. A luz continuava entrando pelas frestas, mas agora era filtrada pela fumaça dos escombros. Minha companheira fechou os olhos e voltou a dormir, talvez para afastar a depressão que começava a retornar.

Quando acordamos, estávamos dormindo juntos. Sobre nós, passos. Talvez fossem ratos. Talvez moscas caminhando no teto. Talvez uma equipe de resgate. O que importava é que havia outras vidas no prédio. E caminhavam ao redor da crisálida que chamávamos de nossa.

Fiz sinal para que ela ficasse quieta. Não se mexesse. Assim talvez eles fossem embora e nos deixassem em paz. "Mas que diabos, estamos na nossa casa!", disse ela. Só então percebi que estávamos mesmo. Estávamos na nossa casa, minha e dela. "Mas fale baixo, mesmo assim, qualquer ruído maior pode desabar..."

Havia mais o que fazer lá do que apenas dormir. E quando já estávamos bem dispostos, resolvemos sair para fazer compras. Afinal de contas, era nossa casa. Podíamos sair quando bem entendêssemos. Podíamos voltar ainda na luz do dia. Ninguém poderia dizer que não. Ninguém poderia nos expulsar pelo bem de nossa própria segurança.

Não foi fácil rechear, não foi fácil mobiliar. Não foi fácil encaixar móveis num chão irregular, num solo quebradiço. Mas já havíamos feitos isso antes, não seria impossível fazer de novo. Com cuidado e paciência. Pouco a pouco juntando as migalhas. O pão de hoje no forno de ontem com o queijo de amanhã, tínhamos uma refeição. E pouco a pouco, juntando as migalhas, tínhamos a mesa para servir, pratos para dividir, facas para cortar.

Helena, era o nome dela. Me disse num desses dias em que a gente arrumava a luminária. A luz foi acesa. A energia voltou e nós com medo de desabar. Jantamos olhando para o teto, nos preparando para correr. "Enfim, Helena, prazer em conhecê-la."

Com a boca ainda cheia, ela me disse que estava satisfeita. Com o estômago cheio, ela me disse que estava grávida. Era meu. Nosso filho. Em nossa casa. Enfim, tornávamo-nos uma família feliz. Olhei novamente e o teto não estava mais lá.

Não que estivesse tudo perfeito, nunca esteve. Afinal, a reconstrução nunca terminaria. Acho que nunca termina, a reconstrução de nossa própria casa. Foi tudo tão queimado. Foram tantos andares destruídos, que o que pudemos recuperar já era uma grande conquista. E talvez houvéssemos recuperado mais do que perdêramos. Um quarto extra que desabou entre a sala e a cozinha. Uma nova pia que emergiu do encanamento do banheiro. Mais móveis retirados do escombros, uma porta que nunca esteve lá. Ainda que com problemas na fechadura, nossa casa era mais nossa. Os pedaços de nossos dois apartamentos formavam mais do que um, embora não chegasse a formar dois completos. O bebê vinha dividir.

Já tínhamos vizinhos. Dizíamos bom-dia. Antigos moradores e novos que vinham se apropriar. Donas de casa que armavam seus coques e fingiam nem ligar para as cinzas em suas bochechas. Diziam bom-dia. E respondíamos de volta com um sorriso no canto do rosto, na bochecha, onde não notávamos mais nossas próprias cinzas.

Helena não era a melhor dona de casa do mundo, mas, nesse mundo de casas incendiadas, ela era boa o suficiente. A divisão de papéis, que já não é mais tão rígida hoje em dia, nos tornava ambos donos, ambos responsáveis. E quando nasceu o pequeno Cristiano, essa responsabilidade se tornou ainda maior.

Afinal, tínhamos de alimentar uma criança, trocar fraldas e dar vacinas, tudo isso sob o risco do chão se abrir. Pisando em falso, nesse chão irregular. Isso gerava uma constante tensão. Isso causava um enorme cansaço. E, por isso, às vezes, eu e Helena brigávamos, derrubávamos uma parede, abríamos buracos. Cristiano apenas chorava.

Afinal, isso é que é vida em família, não? Nem todos têm lareiras a acender. Alguns têm de se contentar com um apartamento incendiado. Nem todos bebês tem bochechas rosadas. Alguns são manchados com carvão. O importante é seguir em frente e sentir-se em casa. O importante é trocar as fraldas e não pisar em falso.

Por tudo isso é que não te convido para vir aqui, mãe. Por tudo isso é que anda difícil te visitar. Muito trabalho a fazer, uma criança a alimentar. Tenho medo de que, se eu saia, tudo desabe. E quando volte não haja mais nada aqui. É difícil manter uma família em pé. É difícil manter um lar. Especialmente quem não tem lareira para acender, mas tem lenha para queimar.

(08/04)

MESA

Neste sábado, 15h, na Martins Fontes da Consolação, tenho uma mesa com o querido Ricardo Lisias . Debateremos (e relançaremos) os livros la...