09/06/2005

A revista Bestiário me pediu um conto inédito. Eu estava com uma idéia fermentando e achei que daria um bom conto. Deu. Mas parece com muita coisa que eu já fiz. Então acabei mandando para eles um conto antigo, que deve sair mês que vem. O outro, coloco aqui. Talvez vocês gostem:

VELHOS SAPATOS DE DANÇA.

Hoje é o último dia da minha vida. É também o dia do meu aniversário. Mas aniversário eu faço todos os anos... ou fazia. Morte é só essa e eu vou vestir os sapatos de dança que comprei esperando um baile que nunca veio e nunca virá. A não ser agora, que ele vem me visitar...

Estive dançando os últimos anos todos, escorregando em meus próprios chinelos. Perdi um centímetro por lágrima, enquanto não pude calçar saltos altos. Da cama do hospital para casa, do quarto para o banheiro, vomitar. Não é assim que se deve conduzir uma mulher. Não foi assim que esperei ser conduzida. Esperei ser tirada para dançar, mas cada passo que dei em falso, assobiava uma nova melodia.

Agora não posso dizer que estou aliviada da dança terminar. Me dá um certo medo. Não medo do que virá depois, mas de não vir coisa alguma. Você sabe, da festa terminar, ninguém me tirar para dançar, e eu ainda ficar esperando os táxis numa rua deserta, vazia, sozinha, até o dia acabar. Até um novo dia começar. Mas um novo dia não começará para mim, se eu estiver calçando sapatos de dança....

Minha mãe acha graça d’eu me maquiar. Ela ri, se esforça, eu na frente do espelho tentando imitá-la. Minha mãe é tão velha que não sabe nem assobiar. O assobio ainda não havia sido inventado em seu tempo. Para mim, ela nunca dançou. E, se dançou, fez questão de esconder, muito tempo atrás, seus velhos sapatos de dança.

Mas ela ainda dançará, ainda viverá, ainda dormirá e acordará num novo dia, quando o táxi a levará de volta para o baile. Eu não. Sou mais nova do que ela, mas todos sabem que, para mim, essa dança será a última. Por isso, sorriem quando me maquio na frente do espelho. Por isso, reparam em cada passo meu e aplaudem, e aplaudem. Como se eu fosse uma criança aprendendo a caminhar.

Também sorrio, porque será necessário. Será necessário dar mais passos para seguir minha dança. E se eu não pudesse nem dar um passo a frente, como poderia me jogar do precipício?

Ontem de noite me segurei. Fechei os olhos na hora de cair. Mergulhei e despertei. Despertei para mais um dia que insistia em insistir. Feliz aniversário. Foi o telefone tocando e me lembrando. Me lembrando que ainda não morri. Ele, em minha orelha, como uma feliz variação na rotina de meus desaniversários. Ele, Santiago, dizendo que viria me visitar, me tirar para dançar, como um presente daquele aniversário, meus trinta e seis anos...

Ele sabia. Sabia que não viria. Sabia que não viria nenhum dia a mais. Nenhum ano, nenhum dia, nenhum aniversário e nenhuma chance a mais para nós dois. Se a chance viesse, ele não viria. Se tivéssemos uma chance, ele não me visitaria. Mas agora se sentia confortável para me tirar para dançar. Agora podia tomar-me em seus braços, já que eu morreria.

Eu morreria em seus braços, renunciando aos meus....

Era só o que faltava. Era só ele que faltava em meus dias. Depois dele, poderia partir. Depois dele, não precisaria de outro aniversário. Eu insistia, a doença me acompanhava. Só desistiria quando ele me tirasse para dançar. Só desistira quando ele me levasse a beira do precipício, me soltasse, e me soltasse para nunca mais me segurar. Quando ele me soltasse, não haveria mais motivo algum para eu me segurar, para não mergulhar. E acordar no dia seguinte.

Ele sempre se manteve distante, enquanto a doença avançava lentamente. Fingia não saber de nada, mas eles sempre sabem, quando a gente está para morrer. Eu não teria orgulho de contar, nem esforço para esconder. Deixaria que ele descobrisse naturalmente, e que viesse. Que viesse me buscar quando não houvesse mais salvação.

Minha mãe fala comigo como se eu fosse criança. Mas ela sabe que a criança é ela, por ser velha, por estar definhando, por estar me deixando, sem nem mesmo saber dançar. Como qualquer mãe que deixa a adolescente num baile. Como qualquer mãe que combina uma hora para a filha voltar. Ela esperaria minha volta para sempre, mas nunca poderia me acompanhar. Seu salto quebrou quando eu comprei o meu. Esses velhos sapatos de dança não lhe servem mais...

Me olho no espelho fingindo me achar linda. Me olho no espelho sabendo que não estou realmente feia, embora me sinta assim. A doença não corroeu minha pele, a morte ainda pode ser bonita. O veneno que apaga meus dias não me provocou rugas, nem manchas, nem consumiu minha gordura, apenas tornará meu coração incapaz de bater. E com meu coração incapaz de bater, como estarão quentes meus lábios, como estará lisa minha pele, como estarão brilhantes meus olhos, meus olhos, olhando para você.

Serei apenas incapaz de ser.

Mas não me importo. Não me importo realmente. Essas são apenas palavras, mais bonitas e mais dramáticas, escritas. Esperei cada dia com medo e ansiedade, agora espero nesse apenas por ele, como um grande e belo, e definitivo, lindo, final. Depois que ele vier me visitar, não terei mais motivos para insistir.

Nem para resistir.

Joana vem cedo e sorrio. Me coloca novos brincos na frente do espelho. Agradeço o presente, mas não faz diferença realmente. Meus cabelos são compridos, ninguém verá. O que importa são apenas meus sapatos, nem meus colares, nem meus vestidos, quando eu me puser a dançar. O que todos querem mesmo é me ver caminhar. O que todos querem mesmo é que eu dê um passo a frente. Que eu dance. Ou despenque. Então o que importa mesmo é o que eu vou calçar. "Por que não coloca aqueles sapatinhos azuis?"

Sorrio. Não. Haha. Sorrio. Os sapatinhos azuis são de salto baixo e eu não vou longe com eles. São sapatos de doente, para ficar em casa, para voltar para cama. Hoje é dia de festa, quero ir mais longe. Quero olhar do alto, dar esse passo, quero andar de salto. Pegue aqueles sapatos prateados. "Quais, aqueles?" Não, aqueles, prateados.

Não são mais. Olho bem. Não são mais. Em meus pés, a prata se foi, o brilho se foi, estão encardidos. Mas eu nunca os calcei, nunca aproveitei, nunca os vi refletindo, a luz sobre meus próprios olhos. É o tempo. O tempo os fez assim. Sem nunca tê-los usado, desbotaram. Os sapatos se cansaram, se cansaram de esperar por mim.

Vou usá-los mesmo assim.

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Apesar de parecer com muita coisa que já escrevi, a idéia veio de uma música do Jacques Brel, cantada pelo Bowie, que estava ouvinvo dno final de semana, "My Death". Refrão:

But whatever lies behind the door
there’s nothing much to do
angel or devil, I don’t care
for in front of that door there’s you

MESA

Neste sábado, 15h, na Martins Fontes da Consolação, tenho uma mesa com o querido Ricardo Lisias . Debateremos (e relançaremos) os livros la...