21/06/2005

Cês tão sabendo que amanhã (quarta) tem minha entrevista no Jô, né? Não sei em que bloco. Talvez no primeiro. Achei legal.

Tem muita gente comprando "Olívios". Já mandei pro Maurício, Leony, Graziela, Karen, Mari e Kessy. O mais legal é saber que tem gente de lugares tão diferentes lendo meus livros...

Acabei de voltar da Lima Barreto. A leitura foi gostosa, um povinho carinhoso e interessado. Queridos colegas, amigos do coração, leitores fiéis. Li dois contos e um capítulo de um romance inédito, além de responder perguntas. Para quem não foi, entrego só o último conto. Foi escrito há 5 anos, mas o reecontrei recentemente e achei que valia:

IRMÃO SOL, IRMÃO ÁGUA

Após seis horas de estrada, passara por todos os estágios de ânimo e expectativa. Ansiedade, sono, receio e arrependimento, não sabia qual era o mais forte. Após seis horas de viagem, o calor e o desconforto era o que mais me incomodava.

Fazia seis anos que não nos víamos, seis anos dentre os quais poucos "ois" foram trocados, mas nunca, nunca nenhum "tchau". Talvez por isso eu viajasse, para provar a nós dois que nada acabara, que teríamos mais razões para "ois", menos chances de "tchaus" e muito mais anos entre nós.

Era uma viagem de seis horas e isso consumia doze horas de meu feriado. Ida e volta. Eu viajava de ônibus, corria sentado, dezenas e dezenas de quilômetros rodoviários, com montanhas, casinhas e arbustos à minha direita. O mundo passava tão rápido lá fora e eu nem podia aproveitar, perdia doze horas trancado, enquanto montanhas derretiam, arbustos cresciam e casinhas eram construídas. O ônibus viajava e jogava pequenas vidas pelo caminho. Tentava eu viajar também e recolher pequenos pedaços da minha.

Eu nem olhava para dentro. Dentro do ônibus, éramos todos em coma, tentando despertar em um novo cenário. Até lá, cada um via o mundo de sua própria janela, encostando o nariz no vidro, se cobrindo com cobertores, espalhando polvilho ao redor de suas misérias. O ruído grave dos motores era a base, sobre a qual cada um de nós solava.

Após seis horas, desconforto físico se adiantava perante minha melancolia e minha abstração. Fazia muito calor e eu tinha medo de desidratar. Estava acostumado a passar muito mais do que seis horas fora d'água, mas nunca me sentia bem. Queria estar apresentável, quando chegasse na rodoviária. Me levantava, cambaleava até o banheiro, molhava a franja, a testa, olhava no espelho e torcia para que ele não percebesse minhas escamas. Lá fora, anoitecia, e me dava medo de ser feliz.

Quando o ônibus parou, já era tarde. Eu estava úmido e cansado, recolhendo as últimas fichas para um sorriso. Pisei hesitante em solo firme, absorvi o ruído das cigarras ao meu redor e esperei que ele se aproximasse.

": ), você está diferente. Seu cabelo cresceu."

Fernando se adiantava para pegar minhas malas. De todas as vergonhas que eu tentava esconder, ele só notava a minha franja, e eu a ajeitava para que desse tudo certo. Fernando era maior, mais forte e não desidratava sob a luz do sol. Enquanto caminhávamos até seu carro, rebobinávamos minha vida até sua cidade, para chegarmos a um ponto de partida. Foi nessa hora que eu comecei a querer ir embora, voltar, esquecer, lembrar apenas de seis anos ou horas atrás, começar tudo de novo e chegar num destino diferente.

"Estou feliz que tenha vindo. Faz tanto tempo. Não podemos perder contato..."

Na luz do carro, pude ver suas escamas, duras, secas, crescendo em direção contrária às minhas. Ele não era um animal aquático, eu tinha certeza, havia um mar de diferenças entre nós.

"Você vai gostar daqui, tenho uma piscina grande. A gente pode nadar amanhã, se fizer sol. Fazemos um churrasco, convido uns amigos."

Ele tentava fazer eu me sentir em casa, preparava o aquário, colocava pedrinhas no fundo, e só me fazia sentir ainda mais falta de meu oceano.

Nossos campos, quando éramos adolescentes e tínhamos apenas garras, subíamos nas árvores, corríamos pela grama e mergulhávamos juntos na vida que estava por vir. Minhas escamas cresciam antes das dele, sob a blusa, na frente do espelho. Eu tinha tanta vergonha, mas esperava que ele me seguisse. Saboreava a chuva, quando ele estava apenas matando a sede. Me masturbava no chuveiro, quando ele apenas se levava. E seguindo as tubulações, a rota do pôr-do-sol, a trilha dos esgotos, nos perdemos no meio do caminho.

Agora, reconstituindo nossas trilhas, deparávamos com uma porção de cenários desconhecidos, áridos, desinteressantes. Fundamentava-se a razão de termos seguido rumos diferentes e nos fazia questionar o por quê de termos nos reencontrado. Achava que sentia falta dele, de nossos campos e nossas árvores, mas eu sentia falta apenas de minhas garras. Se eu ainda as tivesse...se eu ainda as tivesse...

Dormi numa cama seca e quente, depois de um longo banho doméstico. Continuamos conversando antes de dormir. Ele tentava entender o meu mundo e eu escutava tudo o que eu já sabia, sobre o mundo dele. Enquanto ele estava na praia, eu estava muito mais fundo, mergulhado, no fundo do mar. Ele não podia me ver e nem eu podia vê-lo, mas o lixo que ele atirava de sua cadeira, a sujeira que seu esgoto trazia vinha até mim e eu nunca precisei emergir para saber o que acontecia lá em cima.

Dormi e sonhei com terra, ar e fogo. Onde estavam nossos outros irmãos? Haviam deixado crescer pêlos, penas ou queimaduras? Eu sonhava em ser um adulto impermeável, adaptável a qualquer ambiente, e acordei no meio da noite, morrendo de sede.

No dia seguinte, queria continuar a dormir. Sentia-me indisposto e Fernando tentava me animar, lembrando-me da piscina. Seu convite era piedoso. Achava-se superior por não estar preso à água, como eu estava. Mas estava preso à terra, uma área do planeta muito mais limitada. Tentava me fazer inveja com suas montanhas e planícies, enquanto eu percorria milhas e milhas submerso, por paisagens que ele jmais imaginaria. Enquanto ele falava, eu desdenhava sua língua bifurcada, ele caçoava de minhas guelras. Afinal, éramos apenas dois amigos à piscina, ele na margem, eu afundando.

"Você sempre foi diferente, já dava para imaginar. Vai gostar dos meus amigos, tem um que é aquático que nem você. Vou chamar todo mundo e fazemos um churrasco."

Fernando não entendia, mas aceitava, e isso já era reconfortante. De dentro d'água, eu o observava sob o sol, crescido, escamoso, e ainda amigo, ainda irmão. A distância entre nós era apenas superfície, enfim, se nos esforçássemos para estar na mesma praia. Eu não podia abrir mão da água, ele não podia abrir mão do sol, e continuaríamos seguindo caminhos diferentes, mas sempre haveria uma praia, sempre haveria um porto para nos encontrarmos.

Talvez fosse o mergulho, o efeito do cloro, mas eu começava a me sentir feliz de estar ali. O tempo continuaria passando, tínhamos de aproveitar aquele feriado de pausa.

Ele se afastou para cuidar do churrasco. Deixei-me afundar na piscina e só tinha uma vaga preocupação: como explicar a ele que eu era herbívoro?

TIREM AS CRIANÇAS DA SALA

(Publicado na Ilustríssima da Folha deste domingo) Do que devemos proteger nossas crianças? Como não ofender quem acredita no pecado? Que ga...